Artigo
A Senhora de K'anamarka
22 de Novembro de 2017 as 16h 23min
Fonte: Cícero Moraes
Quem não gosta de ser bem tratado? Quem não gosta daquela viagem inesquecível? E quando o tratamento VIP se junta a viagem dos sonhos? Simplesmente perfeito, e é sobre isso que abordarei no texto de hoje.
Não sou o melhor turista do mundo, geralmente quando viajo é por conta de uma palestra, curso ou trabalho. Pode não parecer, mas sou um tanto antissocial e quando estou longe de casa não é incomum que eu fique no hotel e saia no máximo até algum mercado próximo (por conta dos preços proibitivos do frigobar) ou na academia do mesmo (saúde é o que interessa o resto não tem pressa). Poucas vezes eu curti as cidades onde me desloquei, dá para contar nos dedos. O curioso é que para todo o lugar que vou os conhecidos tem mil e uma dicas de programas e locais bacanas. Quase sempre eu ouço com interesse, mas no final acabo ficando mesmo no hotel, na boa companhia do meu notebook e o com o peso das responsabilidades fazendo-me focar no real motivo de estar lá.
K’anamarka foi diferente em todos os sentidos e fez-se tão especial que me inclinou a pensar mais sobre turistar com mais frequência.
A história começou quando o Dr. Oliver Medina, um Antropólogo do Ministério da Cultura de Cusco entrou em contato comigo no começo deste ano. Ele havia acompanhado os meus trabalhos de reconstrução facial no Peru e apresentou um crânio pertencente ao acervo do seu grupo de pesquisas. Tratava-se da Senhora de K’anamarka, uma integrante da elite de K’ana, uma civilização que conviveu harmoniosamente com os antigos conquistadores do Peru, os Incas. Segundo ele esse crânio havia sido descoberto em 2004, as análises iniciais indicavam que poderia pertencer a um homem, mas depois de uma série de estudos com a presença do restante dos ossos do corpo, atestou-se que na verdade era uma mulher e que muito provavelmente já havia sido mãe. O que não está claro até hoje é se ela foi uma sacerdotisa, uma guerreira ou ambas.
Apreciei a história e aceitei reconstruí-la. A parceria foi fechada e os trabalhos efetuados com a participação de duas instituições, o Ministério de Cultura do Peru e a Universidade Inca Garcilaso de la Vega, da qual faço parte. A revelação do rosto se daria em um evento idealizado com esse fim, intitulado Jornada Científica "Reconstrucción de la Señora de K´anamarka". Uau! Um evento próprio para apresentar uma face! Não é todo o dia que isso acontece, a coisa já havia começado bem.
Viajei então até Cusco, a terceira maior cidade do país. O que me impressionou logo de cara foram duas coisas, uma o ar rarefeito que fazia um monte de gente passar mal e outra… a quantidade de brasileiros por lá. Haviam tantos, que o real havia se tornado moeda franca no comércio local.
Assim que me instalei, em um hotel fantástico, que lembrava de alguma forma a casa do Frodo, com cômodos baixos e portas bem desenhadas, nos reunimos para discutirmos a agenda daqueles dias. Dois dias seriam dedicados ao evento que realizar-se-ia a poucos metros dali e o último seria coroado com uma viagem a Machu Picchu. Fiquei feliz com o programa, aquela antiga cidade é o sonho de 11 em cada 10 turistas que viajam ao Peru.
Os dois dias do evento foram uma sequência de bons (e hilários, como essa dança que colocam “fogo no rabo” das pessoas) acontecimentos, a começar pelo sucesso do mesmo. O número de pessoas presentes foi consideravelmente maior do que as projeções iniciais, obrigando os organizadores trocarem a sala de 120 por uma de 400 lugares! No primeiro dia fui chamado a compor a mesa das autoridades… confesso que fico bem desconfortável em tal situação, não me julgo digno de lá estar, mas aceitei e agradeci a todos por tamanha honra. No segundo dia foi o grande momento, a revelação da face. A imprensa foi em peso cobrir o acontecimento, além de pessoas de várias regiões que se fizeram presentes para conhecer o rosto secular a ser apresentado.
Foi bem legal o momento em que a face apareceu no telão, tive que esperar um tempo para que todos a fotografassem. No outro dia pipocaram matérias em todos os meios, jornais impressos, online e televisão. Durante o evento recebi um reconhecimento por parte dos representantes de Espinar, a região onde o sítio de K’anamarka se encontra e apreciei grandemente o carinho deles.
Naquele mesmo dia fomos informados que a estrada para Machu Picchu seria fechada por conta de uma greve, o que impossibilitava a nossa viagem até a cidade. Em face disso, os organizadores fizeram uma mudança na programação, no lugar do célebre destino, eu iria conhecer o sítio arqueológico onde a Senhora fora encontrada, as ruínas de K’anamarka!
Viajamos por três horas em uma estrada bem cuidada, plena de pequenas cidades e construções pitorescas, algumas delas do tempo dos incas. Foi uma oportunidade única de conhecer o interior do país.
Quando chegamos ao sítio arqueológico fomos recebidos por uma delegação da cidade de Espinar, a capital da região. Foi um deleite para os olhos e a alma, ver aquele cenário lindo, limpo, histórico. Aquelas pessoas amáveis, que entre um copo e outro de chá de coca, trocavam uma ideia e riam das anedotas que naturalmente surgiam, fruto de uma boa e sadia conversa.
Rapidamente fui presenteado com a indumentária local, composta por uma capa ricamente estampada e um chapéu branco. O tratamento que recebi foi digno de um chefe de estado, a todo o momento acompanhado por um grupo grande de pessoas que me apresentavam todos os lugares do sítio, contextualizando cada um deles.
Aquele céu azul, o ar limpo, o idioma diferente, o horizonte remoto e maravilhoso, as construções seculares que teimam em resistir ao tempo. Tudo aquilo foi um quadro que se solidificou na minha mente da forma mais memorável.
Depois de conhecer todos os espaços, de conceder algumas entrevistas e tirar uma série de fotos, fomos convidados a apreciar a culinária local. E eis que trazem um prato gigantesco, cheio de deliciosos tubérculos e belos nacos de carne de ovinos. Apreciei cada mastigada e só não exagerei por temer os efeitos da altitude, notoriamente rigorosos com aqueles que não a respeitam.
A visita demorou algumas horas, mas estas pareceram poucos minutos, tamanha foi a alegria de estar lá.
A repercussão da reconstrução, no entanto manteve-se constante a ponto de ser exibida em rede nacional, em uma reportagem de quase vinte minutos em uma das TVs líderes de audiência (lá a diferença do primeiro e segundo lugar não é tão clara como aqui). Ou seja, esse trabalho transbordou os limites de um acontecimento cibernético e acadêmico, ele fomentou o turismo e prestigiou a população regional. Como não se sentir orgulhoso de uma proeza destas?
A festa só não foi completa por que lá não estavam as pessoas que mais amo, mas quem sabe na próxima oportunidade? Por ora só posso agradecer aquele povo maravilhoso… obrigado, obrigado mesmo Espinar, do fundo do meu coração!
Cícero Moraes
Diário de Blender